segunda-feira, novembro 19, 2007

life at the OR

Fui agora "destacado" para o serviço de cirurgia, novamente em CB. E depois do primeiro dia posso fizer que estou bastante entusiasmado pelo que deixo aqui uns videozitos pa abrir o apetite. :D





domingo, novembro 11, 2007

O valente Senhor Vicente


Depois de cardiologia, estou agora na rotação de gastro, já na 3º e penúltima semana, antes de me mudar para cirurgia, por uma semana. Nos primeiros 2/3 dias não gostei mesmo nada desta especialidade, e o meu prognóstico de que estas 4 semanas não seriam do meu agrado, começou-se a confirmar no momento em que tive de perguntar a um doente se as fezes dele eram em "geleia de amora" ou "água de arroz" e se já tinha tido vómitos em "borras de café" ou em "jacto", mas algo veio mudar a minha opinião acerca desta especialidade. Apesar de não ser uma especialidade que me atraia por demais, deixou de ser uma das que (para já) figuram no extremo inferior da minha lista.

Durante as primeiras 2 semanas vimos maioritariamente doentes com Cirrose Hepática de etiologia alcoólica, alguns com ascite refractária e encefalopatias avançadas. Vi também um doente que na primeira semana parecia estar bem de saúde (não fosse o seu tom de pele amarelo "simpson" que nos mostrava a sua grave icterícia), e que, na segunda feira da segunda semana, reparando que o seu estado geral estava bastante deteriorado, perguntei ao nosso tutor o que tinha acontecido e fiquei a conhecer pela primeira vez a sensação de impotência de se estar a perder um doente e nada poder fazer senão deixá-lo ir. Tinha no máximo 2 dias de vida. No dia seguinte passei discretamente pelo seu quarto e vi o filho sentado numa cadeira, cabisbaixo. Olhamo-nos, e antes que ele me perguntasse alguma coisa e me deixasse embasbacado entrei na sala de reuniões que é logo na porta ao lado. Seria a última vez que veria o sr. João nesse quarto. Faleceu durante essa noite.

Na segunda-feira seguinte ficamos a saber que teríamos, cada um, um doente a nosso cargo. Ficamos entusiasmados pela confiança que depositaram em nós, mas ao mesmo tempo assustados, já que a Dr.ª Cecília queria que nós, não só chegássemos a um diagnóstico, mas que também sugeríssemos terapêuticas que nos parecessem adequadas e que escrevêssemos o diário clínico do nosso doente. Num desses dias, o doente de uma colega minha precisou de realizar uma paracentese e eu é que realizei esse procedimento. Luva de cirurgia de tamanho 7 (que me ficou um pouco pequena), e muito nervosismo, já que estavam 8 pessoas a olhar para mim, e era a primeira vez que iria realizar esse procedimento. Palpei a espinha ilíaca anterior esquerda e tracei uma linha imaginária em direcção ao umbigo (este doente tinha uma Cirrose Hepática de etiologia alcoólica avançada, com uma hérnia umbilical evidente, e como tal já tinha sido picado antes, pelo que não foi difícil definir o ponto a picar) e preparei-me para picar no terço mais próximo da espinha ilíaca. Avisei que iria picar quando chegasse ao número 3 e piquei à passagem do 2, para evitar que o doente contraísse e o tivesse de picar outra vez. A picada foi bem sucedida e só faltava tirar uma amostra de líquido ascítico para análise e depois proceder a drenagem do restante do líquido. Tirou-se 6,5 (!!!) L. Pode-se então dizer que a primeira paracentese que realizei correu ás mil maravilhas apesar de estar a tremer como varas verdes. :P

M. Vicente foi o doente que me saiu em sorte. 87 Anos, motivo de internamento: vómitos incoercíveis. História de doença actual: colangiocarcinoma operado em Junho; evidência de esofagite grau A, gastropatia erosiva, gastroparésia, úlcera e estenose bulbar; refere disfagia; desidratação; IR pré-renal; tem HTA, ICC (insuficiência cardíaca congestiva; DPOC; FA (fibrilhação auricular; Alzheimer; derrame pleural bilateral. Ou seja, o meu primeiro pensamento foi… tou tramado! Além disso a Dr.ª Cecília fez o favor de me dizer, com um sorriso nos lábios: “o Dr. é que teve algum azar. Saiu-lhe o doentinho mais difícil!”. Fui falar com ele para tentar obter a história, tarefa que se revelou muito difícil porque eu não sabia que ele tinha Alzheimer e o Sr. Vicente não se conseguia lembrar de quase nada, a não ser de que estava muito chateado com o filho por este o ter trazido para o hospital. Tentei explicar-lhe que o filho tinha feito bem em trazê-lo para o hospital, porque se ele vomitava tudo o que comia, algo tinha de estar mal. O Sr. Vicente mostrava-se então mais tranquilo e compreensivo. Passei a ir falar com ele todos os dias, apesar de saber à partida que não iria obter novas informações, mas a verdade é que comecei a afeiçoar-me a ele e a ter pena dele, e sentia que ele gostava de falar comigo. A história ia-a obtendo junto dos enfermeiros. Quando chegava ao quarto e ele estava a descansar, ficava ali sentado à procura de algo nos livros que o pudesse ajudar. Um dos dias, após falar com um dos enfermeiros (todos muito simpáticos e prestáveis), soube que ele tinha tido um vómito em jacto, o que poderia significar que ele tinha uma obstrução. Entretanto, li algo sobre a sonda naso-gástrica e perguntei à Dr.ª Cecília se não seria uma boa ideia. Ela concordou e decidiu passar a minha ideia à prática. Mandou-me calçar umas luvas e disse-me “vais ajudar-me!”. Confesso que fiquei até com medo, mas não tive que fazer nada mais do que tentar tranquilizar o Sr. Vicente.

A primeira vez que lhe tentaram colocar a sonda, verificaram que seria mais proveitoso tentar colocá-la o mais distal no intestino delgado possível, não só devido a gastroparésia evidente mas também para ultrapassar a estenose bulbar que apresentava, mas a guia saiu do sítio e veio para o estômago. Demos-lhe 100cc de água e logo de seguida o Sr. Vicente vomitou tudo. Tínhamos de repetir o processo. Se da primeira vez o Sr. Vicente se contorcia e chorava, na segunda vez contorcia-se e chorava de forma ainda mais veemente, e quando lhe tiramos o endoscópio e lhe estávamos a colocar a sonda com a guia, ele dizia que queria morrer – “mais vale darem-me um injecção e matarem-me já.”.

Confesso que soltei uma lágrima.

No fim do processo confessei à medica que estava arrependido de lhe ter dado a ideia da sonda. “Foi uma boa ideia. Desse modo podemos tentar estabilizá-lo para que ainda possa ir a casa, coitadinho”. Aí fiquei de rastos. Eu já sabia que ele estava mal, mas agora a Dr.ª Cecília tinha confirmado o pior. A mulher do Sr. Vicente apareceu pouco depois de voltarmos com ele do Raio-X para confirmar se a sonda tinha ficado para lá da estenose bulbar que ele apresentava, e era a vez da Dr.ª Cecília dar a mulher do meu doentinho a notícia que me tinha dado a mim minutos antes. Ela soltou uma lágrima, mas mostrou-se conformada, e foi ter com o seu marido com um sorriso nos lábios. Afinal ela tinha um marido valente, muito valente, do qual se podia orgulhar.

Eu, depois de um dia extenuante, fui para casa descansar, mas não conseguia deixar de pensar naquele homem a apertar-me a mão e a suplicar-nos para acabarmos com o seu sofrimento.